“Tudo seria bem melhor se o Natal não fosse um dia, se as mães fossem Maria e se os pais fossem José e se a gente parecesse com Jesus de Nazaré."
A citação da letra da música religiosa é do Padre Darci Camatti, Pároco da Igreja Matriz Cristo Rei
O Pároco da Paróquia Cristo Rei, Padre Darci Camatti foi o escolhido para ser o entrevistado da sobrecapa desta edição do Jornal Integração da Serra para nos falar sobre o Natal, sobre sua vivência na região Norte do Brasil, onde trabalhou, entre outros assuntos. Ele nasceu em Antônio Prado, em 31 de janeiro de 1969. É filho de Zelinda e Geraldo Camatti. Tem seis irmãos, quatro mulheres e dois homens. Até os 12 anos, estudou no interior do município de Antônio Prado. Depois completou o primeiro grau na cidade de Antônio Prado. Em 1985, aos 16 anos, mudou-se para Caxias do Sul, para estudar no Seminário Nossa Senhora Aparecida. Fez um ano de Propedêutico (preparação para o ensino superior) no Santuário de Caravággio. Após, durante dois anos cursou Filosofia na Universidade de Caxias do Sul (UCS). Em 1991, foi morar em Viamão para estudar Teologia na PUC. No ano seguinte, trancou a faculdade para participar das Missões na Ilha de Marajó, onde permaneceu por um ano. Em 1995, foi ordenado Diácono, em Faria Lemos, distrito de Bento Gonçalves. Em 1996, foi ordenado padre na Comunidade Nossa Senhora do Carmo, Linha 2 de Julho, Antônio Prado. Atuou na Paróquia Sagrada Família, em Caxias, por três anos. Foi trabalhar na Bahia, em seu primeiro ano como padre, onde permaneceu por dois meses, e, após, em Rondônia, durante sete anos. Está em Bento Gonçalves há cinco anos.
Integração – É Natal. O que a data influencia na vida das pessoas?
Camatti – As pessoas se unem, se tornam mais solidárias. Apesar do consumismo desenfreado e da importância que damos aos presentes, o espírito do Natal ainda permanece. As famílias se reencontram, fazem festa juntas. Gosto muito da letra de um canto religioso do Padre Zezinho que diz: “Tudo seria bem melhor se o Natal não fosse um dia, se as mães fossem Maria e se os pais fossem José e se a gente parecesse com Jesus de Nazaré”.
Integração – Qual é o simbolismo do presépio?
Camatti – O primeiro presépio foi feito por São Francisco de Assis, com o objetivo de ilustrar a simplicidade do local do nascimento de Jesus Cristo e de homenagear a natureza. Já o hábito dos presentes vem da visita feita pelos Reis Magos ao Cristo recém-nascido. A visita mostrou que Jesus não nasceu apenas para o povo de Israel, mas para o mundo. Os presentes dados pelos Reis Magos a Jesus Cristo representaram todos os povos. Além disso, o ouro foi dado para mostrar que Jesus Cristo é o verdadeiro Rei. O incenso, para representar sua divindade. A mira, que se desmancha fácil, para representar seu lado humano.
Integração – E a figura do Papai Noel, quando foi incorporada ao Natal?
Camatti – Foi com São Nicolau, nascido em 281 d.C, Ásia. Até onde sabemos os pais de São Nicolau não conseguiam ter filhos. Prometeram então que se tivessem filhos, esses iriam ajudar famílias carentes, distribuindo donativos. Os filhos vieram, entre eles, São Nicolau, que por ocasião do Natal cumpriu a promessa dos pais, disfarçado com uma capa vermelha. Dar um presente é um gesto bonito. Presenteamos quem gostamos. O gesto de presentear está ligado a valores humanos, como o do amor e da solidariedade. Só não podemos esquecer-nos do maior presente que Deus nos enviou, o seu próprio Filho.
Integração – Quando foi que você descobriu a vocação para padre?
Camatti – Sempre gostei de estudar. Quando estava concluindo a 4ª série do ensino fundamental, que era o máximo de estudo que conseguiria, na época, porque morava no interior de Antônio Prado, onde não tinha, que nem hoje, transporte escolar para a sede, uma irmã e um padre estiveram no meu colégio falando sobre vocações e perguntando se alguém tinha interesse em entrar num seminário. Um primo e eu respondemos “sim”. Cheguei em casa e contei ao meu pai. Na hora, ele não disse nada. Mas, na semana seguinte, foi a Antônio Prado, me matriculou numa escola e encontrou lugar para eu morar na casa de meus padrinhos de batismo. Precisava concluir o primeiro grau para após ingressar no seminário.
Integração – Em 1991, você foi para a Ilha de Marajó como missionário. Como foi a experiência?
Camatti – É uma realidade totalmente diferente. Em Marajó, as pessoas estão acostumadas a viver com pouco. Respeitam muito a natureza e sobrevivem daquilo que ela oferece, como a caça e a pesca. Nesta estada em Marajó decidi que realmente queria ser padre, pela constatação da demanda do trabalho missionário. Depois, voltei para o Sul e concluí o curso de Teologia. Fui ordenado padre, em 1996, na comunidade onde nasci: Nossa Senhora do Carmo, interior de Antônio Prado. Comecei a missão sacerdotal em Caxias do Sul, na Paróquia Sagrada Família. Nesse tempo, fui para o interior da Bahia, numa cidade distante cerca de 700 quilômetros da capital, Salvador.
Integração – Na Bahia, você ficou por quanto tempo? Como foi a experiência?
Camatti – Morei apenas dois meses na Bahia, mas a experiência foi inesquecível. Numa ocasião, fui a Bom Jesus da Lapa em um caminhão pau de arara. A viagem durou oito horas. Depois, em 1999, o Padre Lóris Cortese, o Padre Gilberto Lazzarotto, ambos gaúchos, e eu fomos para Jarú, em Rondônia, porque o povo estava precisando de missionários. A cidade tem cerca de 30 mil habitantes, a maioria pessoas simples. A economia do município é baseada na extração de madeira, criação de gado e cultivo de café e cacau. A paróquia onde atuei abrange 157 comunidades, de três municípios: Jaru, Theobroma e Jorge Teixeira. Entre elas, uma reserva indígena Urueu-wau-wau - nome da tribo - com cerca de 70 índios.
Integração – Como foi esta estada em Rondônia?
Camatti – A demanda de trabalho é bem diferente da existente no Sul. Foi uma experiência muita rica. Nossas ações se baseavam na formação de ministros para atuação religiosa, humana e social. Lá, a demanda dos fiéis é menos focada nos padres, já que existem poucos na região. Os ministros realizam batismos, enterros e até, casamentos. Também trabalhei com o social e o meio ambiente ensinando o cultivar de hortas e a evitar o uso de agrotóxicos. Eles comem pouca verdura e acabam contraindo diversas doenças por falta de algumas vitaminas. Em Rondônia, posso dizer que tive uma visão diferente de mundo e de igreja.
Integração – Na reserva indígena, mais especificamente, que trabalhos foram desenvolvidos?
Camatti - O de apoio, principalmente, para que eles pudessem sentir que muitos brancos estão do lado deles. Eles pensam que os brancos só se aproximam deles por interesse. Isso acontece porque tiveram problemas com muitos fiscais da Fundação Nacional do Índio (Funai), que se corromperam. Desenvolvemos também diversos trabalhos de saúde e de alfabetização, sempre respeitando a cultura deles. Uma vez, tentaram fazer com que eles cultivassem gado, para que pudessem ter leite e carne. Mas daí o gado comeu toda a plantação. Colocaram cercas, mas não deu certo, porque eles não fechavam os portões. Na cultura deles a terra é a mãe de todos, não tem cercas.
Integração – A Funai não trabalha na alfabetização dos índios?
Camatti – Sim, mas sempre precisa de apoio. O pessoal da Funai não consegue atender todas as aldeias.
Integração – Você aprendeu algo com os índios?
Camatti. Sim. Aprendi muita coisa. Mais aprendi do que ensinei. Respeitam muito a natureza. Quando precisavam cortar uma árvore, pedem desculpas à mãe natureza por estar fazendo aquilo. Eles são muito pacientes. Vivem com pouco. São bastante afetivos. Procuram ficar bastante tempo junto às pessoas que gostam. São pessoas evoluídas espiritualmente.
Integração – Quais as principais diferenças no modo de vida do povo de Rondônia e do povo do Sul?
Camatti - Eles vivem com pouco e são mais felizes. A maioria das casas é bem simples. Lá, as pessoas ficam com os cabelos brancos bem mais tarde e sofrem menos de depressão. No Sul, as pessoas têm muitos bens materiais, mas nem sempre convivem bem com a família, com os vizinhos e com os amigos. Sem amor e amizade, as pessoas ficam vazias, tristes. O nome do povo do sul é “trabalho”. Às vezes, trabalham até demais. Vi na Internet que tem um grupo de jovens europeus que se encontra para não fazer nada. Isso é uma forma de questionar uma sociedade que “vive correndo”. Em Rondônia, o que me deixou muito chocado foi o desmatamento desenfreado. Madeireiros e, principalmente, fazendeiros, foram, aos poucos, destruindo a floresta. Os madeireiros e os fazendeiros são, em sua maioria, do Rio Grande do Sul e de São Paulo. Os madeireiros ainda selecionam as árvores para cortar. Cortam apenas as maiores. Já os fazendeiros, não. Pegam correntes, amarram aos tratores e destroem tudo. Madeiras que no sul custam uma fortuna, lá são queimadas.
Integração – O Ibama não autua?
Camatti – É uma questão complicada. A burocracia é grande e o poder financeiro e político de alguns, também. Em uma ocasião, fui ameaçado por um madeireiro. Uma semana depois de termos visitado uma reserva indígena, a polícia federal aprendeu bastante madeira e caminhões que estavam no local. Um madeireiro achou que eu havia feito à denúncia e mandou avisar que se a suspeita fosse confirmada, mandaria me apagar.
Integração – Você foi transferido para Bento Gonçalves por opção?
Camatti – O bispo me pediu e eu aceitei. Aqui estou mais perto da minha família. Além disso, temos um tempo para ficar em cada lugar. A mudança, em todos os aspectos, faz bem. Penso que é bom ficar no mínimo cinco e no máximo dez anos em cada lugar. É bom mudar porque, além de conhecer novos lugares, conhecemos novas pessoas, fazemos novos amigos e a missão também se renova.
Integração – Quantas famílias fazem parte da Paróquia Cristo Rei?
Camatti – Há 61 anos eram cerca de 750 famílias. Hoje, são 24 comunidades, que totalizam quase 10 mil famílias. E são apenas dois padres. Aqui as comunidades querem sempre a presença do padre. Mas, com o tempo, acredito que isso vai mudar. A vocação sacerdotal está cada vez mais difícil. O que vale é a ligação com a igreja. Por isso, precisamos formar mais ministros, para mais sacramentos. Aqui, os ministros distribuem apenas a Eucaristia. Com o tempo, podemos dar um passo a mais, com outros ministérios assumidos pelos leigos. Algo que me chama atenção em Bento Gonçalves é que as pessoas fazem bastante trabalhos voluntários. Isso faz muito bem. Como exemplo, cito os casais que organizam a Festa de Cristo Rei. Trabalham durante todo o ano para a promoção da festa. É um povo bastante participativo.
Integração – A população de Bento Gonçalves frequenta as igrejas católicas?
Camtti – Sim, bastante. A tradição católica dos imigrantes italianos ainda é forte. Em Caxias do Sul, por exemplo, em muitas comunidades a participação é menor. A Igreja precisa se modificar em alguns aspectos para melhor evangelizar a sociedade. Nosso maior desafio são os jovens. Muitos vivem num vazio e, por isso, acabam usando drogas, ou tendo doenças, como depressão. A tendência à religião faz parte da natureza do ser humano. Vi numa pesquisa que Bento Gonçalves é uma das cidades do Sul com alto índice de suicídio. Precisamos ter “bem”, não apenas bens. A realização se dá no equilíbrio entre os dois. A sociedade atual exige muito dos jovens. Antigamente, a única coisa que uma criança fazia era brincar. Hoje, precisa fazer aula de inglês, dança, informática, entre outras atividades. Chega num ponto onde o jovem não tem mais estrutura psicológica para aguentar tanta cobrança, tanta pressão. Se você olhar a vida a partir de Deus, ela vai ter outro sentido. O século XXI é um século místico. O credo só acontece por convicção e não mais por imposição social ou familiar, como nos outros séculos.
Integração – O que mudou na Igreja neste século?
Camatti – Houve algumas mudanças. Na nossa Diocese, foi a forma de ministrar a Catequese. Hoje, utilizamos a Bíblia para a catequese. Antigamente, era tudo decoreba. Além disso, a catequese está envolvendo mais as famílias. Também a preocupação da Igreja com as questões sociais, para melhorar a vida das pessoas mais carentes. A necessidade do cuidado com toda a vida no planeta. É uma caminhada maior de envolvimento dos leigos na missão.
Integração – Como você interpreta a linguagem da Bíblia?
Camatti – A linguagem é bastante figurada, complexa. Muitos lêem a Bíblia e pensam que aconteceu exatamente aquilo que está escrito. É preciso entender a história e a cultura do povo que a escreveu. Além disso, existe muita contradição na Bíblia. Os mineiros, por exemplo, usam muito a palavra “trem” para designar as coisas. Dizem “hoje comi um trem”. Pense daqui há 500 anos, se alguém ler isso e levar a sério, o que vai pensar? Vão achar que os mineiros tem estômago de aço. Muitas discussões entre as religiões acontecem, porque as pessoas não entendem a Bíblia, pois é interpretada de maneira fundamentalista. É ler e tomar como verdade sem se questionar. Quando uma religião discute com a outra para defender seu ponto de vista não se chega a lugar algum. Deus não está aí para mostrar que uma religião é melhor do que a outra. O que vale é colocar a fé na prática, na vida. Sempre que posso, faço cursos que me ajudam a compreender a linguagem bíblica.
Integração – Qual é mensagem de Natal que você deixa para nossos leitores?
Camatti – Que neste Natal todos renasçam através do perdão, do amor, da amizade, da paz, da solidariedade e do cuidado com a saúde. Que pensem nas coisas simples, do coração, que são de grande importância para o ser humano. Deus está em nós. Com ele vamos conseguir luz e força para vencermos nossos obstáculos. Quanto a Bento Gonçalves, a cidade é conhecida nacionalmente e até internacionalmente por ser uma cidade rica e empreendedora. Mas precisamos ser ricos também na questão dos valores humanos e cristãos.
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