quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Sobre a Lápide Eterna

A noite cuspia uma fina garoa que levemente ia molhando as ruas e lápides do cemitério. O nevoeiro transpassava os esguios gravetos das árvores desprovidas de folhas do inverno triste e melancólico. Havia vento, sim, mas também havia escuridão, que só podia ser rasgava pelas fracas luzes âmbares vindas dos postes das ruas do cemitério negro. Cruzando o portão, Anne andava sozinha naquela escuridão sem fim, sendo observada por almas, túmulos e santos que, inertes, cuidavam da sua silhueta que começava, agora, a chegar ao local desejado. Sua beleza incomum, adversa ao avulso espetáculo daquela noite, somente aumentou com a lágrima salgada que começava a rasgar seu rosto liso quando visualizou a lápide. A lápide gélida do seu namorado Thomas.

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O amor que Thomas e Anne promoveram foi digno de um romance esplendido. Amaram-se como poucos amantes um dia souberam se amar. Nas noites frias de inverno ou nas ardentes de verão, lá estavam eles, unidos, dispostos a derramarem o nítido frescor de um mundo imaginário e sutil, recheado com o olhar magnífico do amor e seus pecados.
Conheceram-se em uma noite negra e feliz. Ele era um adorável músico, que preenchia suas noites em um bar, onde tocava todos os finais de semana. Thomas era vocalista de uma banda de rock e se tinha uma coisa que o deixava feliz, era cantar. Porém, numa noite qualquer, ele haveria de sentir o seu coração pulsar com maior velocidade ao perceber que talvez o amor, de fato, lhe observava em alguma mesa daquele bar, bebendo Martini. Era Anne, sorrindo para ele, extasiada ao vê-lo tão belo. Thomas encantou-se subitamente pela jovem mulher de cabelos negros como a escuridão, pele tão branca como a neve e olhos tão vivos como o mar banhado pela lua de prata na alta madrugada.
Foi naquela noite que eles ficaram juntos pela primeira vez. Anne, a mulher jovial que trabalhava em uma loja de calçados e Thomas, um roqueiro apaixonado pela música. Um casal lindo. Um casal que se completava, que se amava e que vivia num mundo de imaginação criado por eles mesmos, onde apenas o amor e a paixão os sustentava.
Ficaram juntos por quase cinco anos, vivendo dias de ouro, promovendo noites de música, amor e segredos. Porém, quando um dia, assim tão rapidamente, Thomas voltava de uma apresentação, a maldição da dor e da desgraça haveria de romper o laço afetivo criado entre os dois. A Van que conduzia a banda abalroou-se com um caminhão e todos os quatros componentes morreram, inclusive ele, Thomas.

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Agora ali, sobre o túmulo do seu grande amor, chorando lágrimas de saudade pela perda de boa parte de sua vida, Anne ajoelha-se sobre a lápide que revela a foto de Thomas, sua data de nascimento e óbito, sua frase preferida e a mancha da saudade.
Anne olha para o seu, grita de dor, e lentamente começa a tirar algo de dentro do seu casaco. As lágrimas e a saudade a consomem, e ela, para acabar com essa dor, termina com a maldição da saudade ali mesmo. A lâmina da faca entra em seu peito, e Anne cai sobre o túmulo do namorado, banhando-lhe de sangue, matando-se de saudade. A névoa faz parte da cena e a fina chuva começa a cair sobre o corpo estendido e ensangüentado de Anne, morto sobre a lápide eterna do seu grande amor.

Marcelo dos Santos

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